Levantou da rua, ajeitou sua roupa, reergueu a bicicleta, adquirida a duas semanas, agora estreada com uns arranhões e o pneu um pouco empenado.
Sentia uma ligeira ardência (na verdade, não sabia dizer se era ligeira ou não, já que era primeira vez que experimentava a sensação, portanto não possuía um referencial). Checou seu joelho, estava com uma ferida aberta, não muito grande, do tamanho de duas uvas, focou no vermelho de si mesmo e se divertiu a cutucando e experimentando a sensação no limiar entre a dor e o prazer.
Depois se lembrou dos amigos, olhou ao redor, aonde estariam? Da última vez que os viu tinham virado na esquina, velozes como águias em suas bicicletas também relativamente novas. Foram eles a distração que o fez perder o controle e cair ali, na frente daquele poste naquela esquina. Guiou sua bicicleta gentilmente até o ponto de ônibus, a equilibrou na calçada e sentou-se ao lado de um jovem casal que conversava prazerosamente. Não reservava a mínima atenção a eles, estava perdido em divagações que não saberia explicar se o pedissem, sobre como poderia ser ele tão lento em relação a seus amigos, sobre como aquela menina, que ainda não descobrira o nome, e que sentava a duas cadeiras à frente e três a esquerda despertava uma gama de milhões de sentimentos ligados entre si, como se todos em sua pluralidade fossem um só. Um paradoxo que se esforçava para desvendar enquanto carros passavam a sua frente e o cachorro da casa ao lado dava tudo de si para espantar o temido invasor de seu território (na verdade apenas um caminhante ocasional). Havia acabado de estabelecer uma meta para descobrir o nome daquela menina quando os dois que estavam ao seu lado levantaram para se acomodar na bicicleta deles (o homem no banco, a mulher no varão) se preparando para partir.
Então se lembrou do joelho ferido, o olhou novamente e sorriu, era bacana, será que deixaria uma cicatriz? Seu joelho não era mais um joelho intocado, liso, sem feridas, sem memórias, pelo menos agora tinha uma estória para contar para seus amigos, eles sempre tem ótimas estórias, agora ele também tinha, e ainda teria uma prova do acontecido impresso em seu joelho não mais virgem. Estava esperando os amigos, sabia que sentiriam sua falta e voltariam, sabia que eles passariam na frente daquele ponto, já havia percebido que ali naquele lugar era sempre assim, as pessoas sempre se encontravam, cedo ou tarde.
De repente se lembrou de um pensamento que não deveria lembrar, pois este arruinou toda a sua paz de espírito, trouxe a tona um turbilhão de ansiedade e nervosismo, pois não tinha feito o dever de casa. Havia deixado para depois do almoço, mas o chamado dos amigos logo após sua refeição o fez abstrair e partir para a rua. Como deixara isto acontecer? Esquecera totalmente da sua obrigação diária quase religiosa. Deveria correr, pois estava perto da hora de seu pai de chegar, e deveria terminar o exercício rapidamente para a inspeção paterna das 6 e meia. Daria tempo se fosse para casa naquele exato momento, nem um segundo deveria ser desperdiçado, nada o distrairia, nada seqüestraria sua atenção daqueles problemas de matemática, nem mesmo os seus desenhos animados, que começavam todo dia as 6 e acompanhava fervorosamente, agora que sua tv também era a cabo, como a dos seus amigos.